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O valor das coisas

16 de junho de 2022
O valor das coisas

Tem dias que nossas emoções são uma gangorra, e se for considerar a super lua de ontem (carinhosamente apelidada de Lua de Morango) a situação piora. E foi assim, com mil projetos e prazos na cabeça que, enfim, uma pessoa entrou em contato comigo porque estava interessada em ver os quadros que eu tinha, com pôsteres do Klimt. Decidi anunciar uma coleção de quadros que estavam a muito tempo guardados e, apesar de achar muito bonitos, não me interessam mais. Assim, fui tentar a sorte na rede online.

Depois de muitos contatos e alguns desencontros, combinei com a pessoa interessada para que ir ver o produto na minha casa. Ela chega e diz que não sabia que eram pôsteres, pensou que era pintura. Num primeiro momento pensei se ela tinha lido o anúncio com atenção, porque se eu tivesse um quadro original do artista com certeza não anunciaria em plataforma online de vendas – tão pouco por aquele preço simbólico. É que um Klimt, com certeza, não é uma obra original da qual nos desfazemos assim, além de que sua produção artística está as mais valiosas do mundo.

Deixei passar o assunto, achei que ela poderia não ter lido mesmo o anúncio, ou visto nos vídeos que enviei que se tratavam de pôsteres. A possível compradora ficou analisando cada obra, algumas eram quadros bem grandes, de quase um metro, outros metade desse tamanho. Ela olhou calmamente por alguns minutos, e fiquei tentando imaginar o que pensava. Será que estava sem graça por ter achado que eram pinturas ao invés de pôsteres? Então eu disse que, caso não sei interessasse, não seria problema nenhum.

Para minha surpresa, ela decidiu ficar com dois grandes. Fiz pouco mais da metade do valor que pedi nos dois, que já era muito mais barato que o preço de mercado, mas como queria me livrar logo não me importei – e até dei três dias de prazo para receber o pagamento. Horas depois, ela ainda me contatou dizendo que estava pensando sobre o tamanho dos quadros que tinha levado, e também sinalizando interesse em um quadro menor. Fizemos acordo, e eu também fiz um preço muito bom no pôster pequeno.

Mas, neste momento, tive dúvida se realmente queria prosseguir com a venda dos quadros pequenos. É que, apesar de não pendurá-los mais na parede, eles me trazem boas lembranças de uma época e um lugar específico. E então uma amiga minha me fez refletir, indiretamente, se eu estava apegada àquele objeto e se isso valia mesmo à pena.

Penso que a gente aprende a se desapegar todos os dias, mas isso não é tão natural quanto parece. Houve uma época em que saí doando muitas coisas: sandálias que nunca usei, objetos de decoração, roupas novas, vestidos de marca, itens de cozinha e de “cama, mesa e banho”. Eu não via mais sentido em ocupar espaço no guarda-roupa, e sentia uma necessidade constante de sempre me livrar de mais e mais coisas. Foi bom, como se, num ato simbólico, eu me livrasse tanto do que não me servia mais, quanto daquilo que, apesar de novo, não combinava mais com a pessoa que eu estava me tornando.

Em outros momentos, quando estamos em um mar de emoções ou em situações complexas, nos apegamos mais a algumas coisas, mesmo que elas não façam mais sentido. É que esse cantinho do apego é caloroso, confortável, familiar, gostoso de se estar. Mas, o que importa, não são as boas memórias e lembranças que carregamos? Eu amo alguns desses quadros, mas eles não carregam mais o mesmo sentido do que quando pertenciam a outro espaço, contexto, situação específica. Mesmo que eu os pendurasse nas paredes da minha casa, eles não seriam mais os mesmos quadros daquela época.

Imagem representativa do quadro “o Beijo”, um dos mais famosos do artista Klimt.

Nós mudamos, dentro da mesma casa ou não, parados ou em situações dinâmicas e, mesmo quando pensamos que estamos estagnados, o mundo gira por nós o tempo todo. Logo, a gente gira mesmo que inerte. Então, qual o sentido de qualquer apego? Lembrar de momentos bons, é memória. E é óbvio que tenho itens que têm um significado afetivo imenso na minha vida. Mas não são todos eles que precisam estar comigo fisicamente, e é sobre isso que devemos pensar. O que vale ser guardado? Qual energia vai morar na memória de um objeto? O que precisamos passar para frente? Que pesos extras estamos carregando, por apego?

E foi assim, que na ânsia de vender logo os quadros, negociei um valor super zen para a pessoa interessada. Agora, acho que ela sabe e pensa sim que fez um bom negócio, e pode até ter pesquisado valores de pôsteres daquele estilo e quem foi Klimt de fato (se já não o sabia). A questão é que não me interessa se foi um bom ou mau negócio do ponto de vista financeiro. Eu passei os quadros para frente e guardei em segredo só o essencial deles. E, para mim, esse segredo é o verdadeiro valor das coisas.

 

Kalyne Menezes

Sou fundadora, diretora e coordenadora geral do Antes do Ponto Final. Jornalista, escritora e pesquisadora. Gosto de escrever, falo no podcast e apareço no vídeo para contar histórias de pessoas e lugares, de diferentes maneiras. Também gosto de ir atrás das relações entre Comunicação, Informação, Cultura, Cidadania e pessoas com foco no que é social e coletivo.

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