Bem-vindo, use nossas ferramentas de acessibilidade.
C C C C
A- A+
Diário Textual > ...Relicário.

Mascate

Certa vez pai me disse que já tinha sido mascate, que era como o pessoal da cidade também usava como sinônimo de feirantes, mesmo que não fossem vendedores ambulantes

9 de agosto de 2020
Mascate

Aprendi a nadar com meu pai, num rio chamado Rio de Ondas (Foto: Pixabay).

Aprendi a nadar com meu pai em um rio da minha cidade, chamado Rio de Ondas. Acho que quase todo mundo lá aprendeu assim, meio que no improviso. Diferente do meu pai, que já resgatou gente, a única pessoa que sou capaz de salvar de uma situação embaraçosa que envolva um rio sou eu mesma. Não me arrisco a tirar ninguém de um rio por vários motivos, como o risco de me afogar junto pelo desespero de outra pessoa.

Meu pai sempre gostou muito do rio, mais do que o resto da família. Quando criança apanhou várias vezes da minha avó por ir escondido nadar no Rio Grande, que à época era fundo. “Quando o vapor chegava a gente corria pro rio, porque ele fazia ondas e a gente aproveitava”. Todas as vezes que passo um tempo com ele – e também o meu tio Nego, que é o melhor amigo dele – fico sabendo de novas histórias, e me divirto muito com elas. Numa dessas vezes, há uns dois anos, meu pai me disse que era mascate, que era como o pessoal da cidade também usava como sinônimo de feirantes, mesmo que não fossem vendedores ambulantes.

Eu já sabia que quase todo mundo da minha família paterna havia trabalhado na loja do meu avô, que trazia produtos variados de São Paulo para vender no mercado central da cidade, mas não imaginava que meu pai, mesmo depois de ser funcionário público, continuava na feira. Ele vendia (com meu tio) aquelas camisas brancas para os recrutas do exército, “fazia sucesso entre o pessoal, porque a qualidade era muito boa”. Além disso, tinha sandálias femininas de um modelo rasteirinha, muito boas também. Depois, quando nasceu o primeiro bebê da família, ele largou a feira para ficar o fim de semana todo em casa. Foi um período do qual o meu pai, Didi, se lembra com carinho e até orgulho, no qual ele se divertia trabalhando. Talvez seja por isso que, até hoje, é ele quem vai à feira livre todo sábado, por volta das cinco da manhã, onde conhece e é conhecido por quase todos.

Dessas experiências do meu pai sempre aprendo muita coisa, é como se ele abrisse a sua grande mala de mascate e tirasse devagar os “produtos” que realmente importa para a minha trajetória de vida. O primeiro deles é orgulho: de quem eu sou e de onde eu vim, não importa por onde eu ande. Depois ele me apresenta a dignidade e a honestidade de trabalhar, me mostrando o papel e o impacto disso na vida de várias pessoas, independente da função. Em seguida ele me dá a simplicidade, empatia e amor, sempre tão vitais na nossa vida. Meu pai ainda me revela que o conhecimento e a sabedoria, por mais difícil que seja obtê-lo, são essenciais na vida. Dentre as coisas na mala, ele me dá a persistência e a paciência para ir atrás do que eu desejo. E por fim, lá no fundo da mala, mas tão importante quanto os outros itens, ele me dá um pouco de, porque embora seja pequena e possa se perder em alguns momentos difíceis da vida, ela sempre está lá, se multiplicando, no fundo da mala. E todos os dias, em especial no aniversário dele e no dia dos Pais, eu me lembro o que ele já me deu e peço para ele compartilhar mais itens que a mala do mascate vai adquirindo com o tempo e a experiência.

Kalyne Menezes

Sou fundadora, diretora e coordenadora geral do Antes do Ponto Final. Jornalista, escritora e pesquisadora. Gosto de escrever, falo no podcast e apareço no vídeo para contar histórias de pessoas e lugares, de diferentes maneiras. Também gosto de ir atrás das relações entre Comunicação, Informação, Cultura, Cidadania e pessoas com foco no que é social e coletivo.

Baixe o e-book e saiba mais sobre.