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RESENHA – A terra dá, a terra quer – Antônio Bispo dos Santos

14 de julho de 2023
RESENHA – A terra dá, a terra quer – Antônio Bispo dos Santos

A Terra dá, a terra quer

Mestre Nego Bispo, ou Antônio Bispo dos Santos

Resenha por Evaldo Gonçalves

A gente pega a leitura pelos olhos e a capa que abrem as palavras desta obra conversa, como se estivéssemos sentados no alpendre de uma roça nos sertões. Podiam ser os sertões nordestinos, terra de onde vem o líder Quilombola Antônio Bispo dos Santos, ou os sertões goianos de onde eu mesmo falo. Nego Bispo rabisca palavras de sabedoria  ancestral e carrega nas tintas memórias de confluências. Ele repete à exaustão: quando a favela perder o medo do quilombo e o quilombo se aliar às favelas, o asfalto derrete.

Nego Bispo escreve como quem conta causos e semeia palavras. Colonial, decolonial, descolonial…. Nego Bispo nega tudo isso. Sua obra é contracolonial, assim se define. “Quando completei dez anos, comecei a adestrar bois. Foi assim que aprendi que adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-se de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta”.

Nego Bispo nos fala dos adestradores que batem e dos que acarinham, mas todos eles, como os colonizadores, querem destruir a natureza das suas vítimas. O adestramento, como a colonização, só busca algo: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação. Conhecendo a função de adestrador, Nego Bispo encontrou seu lugar. Ao invés de se deixar nomear, é preciso dar a nós mesmos nossa agência, usando as armas do inimigo em defesa. Lembro de Mestre Pastinha ao ler Mestre Nego Bispo. “Capoeira é mandinga de escravizado em ânsia de liberdade”.

Nego Bispo não é linear, contraria a lógica do começo meio e fim. Somos “começo, meio e começo” ele diz. A ele dou salvas e assim, pisando devagarinho, como diria Dona Ivone Lara, jogamos o jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las. Nego Bispo se pergunta porque o povo da favela fala gírias e ele mesmo responde “a favela adestrou a língua, a enfeitiçou. Temos que enfeitiçar a língua.” E esse feitiço da língua ta nas palavras da favela, ta nos quilombo, nas aldeias. Ta em cada canto disso que chamamos Língua portuguesa e Lélia Gonzalez nos presenteou como pretuguês. Luiz Antonio Simas fala de macumba, ele a define como a terra dos poetas do feitiço e é com palavras , mas não só com elas, que devemos trabalhar.

Nego Bispo escreve como quem fala e lhe perguntam se sua obra não deveria chegar aos povos irmãos dos quilombos, das aldeias, da beira rio, os vazanteiros, quebradeiras de coco, geraizeiros. Não! Escrevo pra que a academia me leia, pra que nos vejam e pra que saibam que existo. Os meus, os nossos, já me conhecem. Eu não escrevo, conto causos que quem veio antes já me contou. é hora da gente fazer confluência. “não tenho dúvida de que a confluência é a energia que está nos movendo para o compartilhamento, para o reconhecimento, para o respeito. Um rio não deixa de ser rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passar a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece”.

Eu sou esse rio. A criança que cresceu nas margens do ribeirão de água quente, que pescava no Piracanjuba. Quem nasceu para orixá, nas margens desse mesmo ribeirão de água quente. Sou o Rio Quente, sou o Piracanjuba que lá na barra vai se juntar ao Corumbá. No meio do Paranaíba ainda existo, vou ser e energia hidrelétrica lá da Itaipu. Posso andar milhas sem perder a nascente do rio quente, que no meio das pedras virou a monstruosa Pousada. Há poucos dias li que essa mesma Pousada abriga um parque aquático que foi escolhido como o melhor do Brasil, um dos melhores do mundo. Parque cujas águas nascem das fraldas da serra de Caldas, como eu mesmo nasci.

E esses dias também soube que a serra, alívio para os meus olhos depois de quilômetros e quilômetros que só vejo cana e soja na estrada vai deixar de ser nossa. O Governo do Estado tem um projeto de privatização dos seus parques estaduais e o Pescan deve ser um dos primeiros a, usando as próprias palavras do projeto, vai ser “concedido à iniciativa privada”. Terei condições de caminhar nas ameias da serra de minha infância, quando o Rio Quente Resorts for concessionário daquele monumento que diziam ser um vulcão extinto?

Nos tomam a terra, nos tomam a força, mas o rio continua, porque ele conflui. Se o deixarmos vivos.

Juro que comecei a escrever esses rabiscos sem saber onde ia começar, nem pensava no fim, porque Nego Bispo já nos disse começo meio começo.  A cidade ta chegando na serra e o que é a cidade? “ é o contrário de mata. o contrário de natureza. a cidade é um território artificializado, humanizado. a cidade é um território arquitetado exclusivamente para os humanos. Os humanos excluíram todas as possibilidades de outras vidas na cidade. Qualquer outra vida que tenta existir na cidade é destruída. Se existe, é graças à força do orgânico, não porque os humanos queiram”.

Ele fala de conexão e desconexão. O pecado original não foi comer uma maçã, mas nos desligar do reino animal. Ele nos fala de pagamentos, de chegar à cidade e pagar terreno pra construir, de pagar pela casa, pagar por tudo. O capital engolindo o humano, que já se acha fora da natureza. “quando o saber é transformado em mercadoria e hierarquizado, qual é a medida que justifica um servente ganhar menos do que um pedreiro? ou um engenheiro ganhar mais do que um pedreiro, se o engenheiro só sabe desenhar e ninguém mora dentro de desenhos? se quem faz a casa é o pedreiro, o engenheiro não deveria receber nada. o engenheiro não deveria ter salário, ele deveria ser pedreiro”. Estou lá e cá e, mesmo longe das cátedras, vejo Marx e a Alienação ai. Não temos a terra, não temos os instrumentos para trabalhar a terra, não temos teto. Tanta casa sem gente, tanta gente sem teto.

Nego Bispo diferencia arte de cultura, o natural do artificial. A confluência aqui. Se rola uma gira e alguém canta pra seu Zé Pelintra, todo mundo canta junto. Ele vem de alagoas e toma cuidado com o balanço da canoa. Deixa pra traz o território, mas segue mestre do catimbó, carregado com a malemolência do malandro carioca. “os colonialistas dizem que  não temos cultura quando não nos comportamos do jeito deles. quem não sabe tocar piano ou não sabe o que é música erudita, quem nunca frequentou um teatro, quem não frequenta cinema, para eles, não tem cultura. para nós, quem não sabe fazer uma comida, quem não se emociona com a cantiga de um pássaro não tem um modo agradável de viver”. Podemos resumir assim, queremos bem viver.

Nego Bispo fala que o dinheiro controla nossa vida, nos afastando do bem viver. Ele boicota as patacas. Não fica em hotel, prefere o alpendre das casas amigas, não gosta de shopping, prefere as feiras. Ali, diz Nego Bispo, “vejo gente que parece comigo”. Assim, não são os quilombos que estão nas cidades. Nego Bispo fala de BH, mas só consigo imaginar  minhas andanças pra Mineiros, lá no Cedro. Foi a cidade que invadiu as terras de Chico Moleque. 

Ele nos fala dos modos de produção, daqueles da grande indústria que só produz o que vai vender, enche de veneno, que deram o bonito nome de defensivo agrícola, mas sabemos ser veneno. Veneno que impede que nasçam outras sementes, ou que as nossas próprias sementes, que hoje também ganharam o bonito nome de criolas, floresçam. Falo de Nego Bispo e falo de mim.

Sobrevivo hoje em Jataí e é sobreviver mesmo, porque se eu tento plantar um pé de couve no quintal, antes das primeiras folhas crescerem as lagartas já comeram. O tomateiro até dá folhas, mas antes que os frutos amadureçam nos pés, já tão todos brocados. Só o tomate tapera prospera, aquele pequenino, redondo, vermelho como uma pimenta. Quando dizem covas pra sementes, devemos falar em berço, pois é ali que a nova vida vegetal vai prosperar. Quando falam de pragas, vemos ervas, são chás, comidas, também com o nome bonito de Plantas Alimentícias não convencionais. Não convencionais para quem? Prefiro a forma de nominar de Nego Bispo. Plantas alimentícias não colonizadas.

Já comeu um refogado de taiobá? Um polvilho de araruta? e um franguim com ora pro nobis?  Se eu continuar, não vou chegar a lugar algum. Começo meio e começo. “somos povos de trajetórias, não somos povos de teoria. Somos da circularidade: começo, meio e começo. as nossas vidas não têm fim. a geração avô é o começo, a geração mãe é o meio e a geração neta é o começo de novo”.

Evaldo

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