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Os pássaros que enterrei

15 de janeiro de 2023
Os pássaros que enterrei

Esses dias, voltando do trabalho, vi um passarinho morto no chão. Provavelmente, ele sucumbiu à uma forte chuva ou não conseguiu fugir das garras de algum animal. E, com este fato, me lembrei dos muitos pássaros que enterrei na minha infância. Na casa em que cresci era frequente encontrar passarinhos mortos no quintal, acredito que provavelmente por causa de algum conflito com o meu cachorro ou o gato da vizinha.

Além de ter um quintal grande e com muitas árvores, a casa tinha um espaço mínimo entre a laje e as telhas, e era comum os pássaros fazerem morada lá. E, por isso também, era natural encontrá-los mortos no chão semanalmente. Isso só mudou quando meu pai decidiu tapar esse espaço entre a telha e a laje, e os pássaros passaram a ficar predominantemente nas árvores de casa.

O fato é que eu via alguns pássaros no chão e fazia o velório. Eu não imaginava a causa da morte, mas sentia por ele não poder mais voar e cantar alegremente. Assim como os humanos fazem, eu achava que os passarinhos mereciam um velório e um sepulto, embora nunca tivesse ido em um até então. Baseada nos filmes que vi e nas conversas dos adultos, eu fazia uma oração pro pássaro morto, uma cruz com palitinhos de fósforo e enterrava no jardim – às vezes perto de uma flor.

Eu não via a morte com medo ou algo estranho, pra mim ela também fazia parte da vida daquele pássaro naquele momento. Assim como compreendia, mesmo que ninguém me falasse, que todos os dias nascem novos passarinhos e o coro continuava me acordando todas as manhãs. Não é que aquele pássaro que morreu não fosse fazer falta, mas a vida continuava porque a natureza depende dos pássaros. Mais adiante, na escola, eu ia entender que as aves são fundamentais pro meio ambiente, em diversas facetas, como na dispersão de sementes de novas aves e no controle de algumas pragas.

O pássaro pra mim tem um poder magnético. Não sei se a liberdade de voar, o simbolismo da sabedoria e inteligência que acompanha algumas aves, ou essa trajetória entre o céu e a terra que me faz pensar no quanto são divinos. Aqueles pássaros que enterrei, por volta dos meus cinco anos, não me arrancaram lágrimas. Eu acariciava os passarinhos, envolvia em uma folha, e via o quão terno eles poderiam ser, mesmo daquele jeito. E tinha em mente, mesmo que de uma forma não tão óbvia para uma criança, que até ali ele havia persistido e encantado todos à sua volta.

Já na vida adulta, tento me lembrar desses enterros dos passarinhos e compreender que tudo seguia um fluxo natural: a vida, a morte, as adversidades, o retorno à terra. E penso, às vezes, como nós nem sempre aceitamos o que é óbvio e evidente. Quantas pessoas também cumpriram seu papel aqui e partiram. Quantos projetos lindos finalizaram seu ciclo, de modo encantador. Quanta ternura uma ação nossa pode desencadear, muito tempo depois de ser realizada. Quantas histórias podemos musicalizar (e cantar em coro também). Quantos trajetos podemos fazer. Qual pássaro desejamos (e precisamos) ser, em vida?

Kalyne Menezes

Sou fundadora, diretora e coordenadora geral do Antes do Ponto Final. Jornalista, escritora e pesquisadora. Gosto de escrever, falo no podcast e apareço no vídeo para contar histórias de pessoas e lugares, de diferentes maneiras. Também gosto de ir atrás das relações entre Comunicação, Informação, Cultura, Cidadania e pessoas com foco no que é social e coletivo.

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